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‘La garantía soy yo’, dizem ministros sobre casos em que parentes advogam no STF

‘La garantía soy yo’, dizem ministros sobre casos em que parentes advogam no STF

Nestes tempos estranhos, para usar a expressão de um ex-ministro, o Supremo Tribunal Federal é uma das instituições mais imprevisíveis da República – exceto quando se trata de resguardar as “prerrogativas” (sinônimo frequente de “privilégios”) da magistratura. Aí não há dúvida sobre como o tribunal decidirá.

Neste fim de semana, a maioria da corte bateu o martelo e considerou inconstitucional um dispositivo do Código de Processo Civil:

“Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: (…)

VIII – em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”.

A regra abarca diversas situações, algumas, de fato, problemáticas.

Para cumprir a regra cabalmente, um juiz teria de manter uma lista sempre atualizada dos clientes do escritório de um parente ou cônjuge, declarando-se impedido quando um desses clientes fosse parte em uma ação, mesmo que patrocinada por uma outra banca.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) considerou essa obrigação “impossível de ser observada” e por isso pediu que o inciso VIII do artigo 144 fosse declarado inconstitucional. Seis ministros do STF concordaram até agora com a tese: Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moraes, Kassio Nunes Marques e Cristiano Zanin.

Existe, no entanto, uma outra situação abrangida pela regra, essa facílima de identificar. Trata-se daquele processo em que o escritório do cônjuge ou parente assina a demanda. Em 100% dos casos, tudo que o magistrado precisa fazer é olhar o papel timbrado das petições para se informar sobre essa hipótese.

O STF está prestes a decretar que também nesses processos não existe impedimento do juiz. Aí já é demais.

O Senado criou a regra que agora está sendo derrubada para afastar da Justiça a suspeita de tráfico de influência, ou seja, o temor de que na mesa de jantar ou embaixo do edredom um cônjuge, por exemplo, possa convencer a cara-metade a decidir conforme os interesses do seu escritório de advocacia.

Essa seria uma medida prudente se o Brasil tivesse os padrões de conduta de uma sociedade escandinava. Sendo o Brasil o que é, o STF deveria considerar a medida indispensável. Existimos sob a sombra daquilo que o cientista político Raymundo Faoro chamou de “patrimonialismo estatal”.

O brasileiro está pronto a ver como praxe, e não como exceção, o estado de coisas em que o interesse privado se sobrepõe à moralidade pública – o estado de coisas em que o cônjuge juiz favorecerá o cônjuge advogado sem pestanejar caso vislumbre uma brecha para isso, sempre com as devidas vênias e a mais enfeitada retórica dos bacharéis.

Somos um país onde nenhuma autoridade pública contará com a boa vontade dos cidadãos ao dizer “la garantía soy yo”. Regras que ao menos formalmente resguardem o interesse público da intrusão das influências privadas jamais podem ser tidas como descartáveis. O que o STF está fazendo é descartar uma delas.

Tudo fica ainda pior quando se sabe que há centenas de ações no Supremo e outros tribunais superiores patrocinadas pelos escritórios de cônjuges de ministros, sendo que esses últimos quase nunca se declaram impedidos ou suspeitos para atuar nas causas. Todos os seis magistrados que votaram pela inconstitucionalidade do inciso do CPC se enquadram nessa situação. Crusoé publicou recentemente uma capa sobre isso.

Cristiano Zanin, o calouro do STF, trapaceou em seu voto ao dizer que o inciso “impede o parente do magistrado de atuar como advogado”. Não é nada disso: a única coisa proibida era que o magistrado julgasse essas causas. Agora, nem isso. A mulher de Zanin, Valeska Teixeira, tem causas no STF.

Ainda que todas as ações promovidas por parentes de ministros tenham sido julgadas de maneira absolutamente imparcial, sobra o fato que os escritórios de Brasília vendem o acesso aos gabinetes de ministros como um ativo e cobram caro por isso. Só essa propaganda bem pouco velada de suposta influência sobre a corte já deveria fazer com que os ministros vissem na obrigação de se afastar de processos promovidos pelo escritório de parentes um benefício, em vez de um ônus.

Falemos de bom senso. Quatro ministros votaram para manter, em diferentes graus, a proibição do CPC: Carmen Lúcia, Rosa Weber, Edson Fachin e Luis Barroso. Os dois últimos têm parentes advogados. Falta o voto de André Mendonça. E falta também a redação de um acórdão que harmonize todos os argumentos apresentados na corte. Poderia vir daí uma boa surpresa — o tipo de surpresa que o Supremo está devendo. Mas eu não apostaria nisso.

Fonte: O Antagonista

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